Felipe Aud lança seu álbum de estreia, o musicalmente cosmopolita “Acumulado”, que soa como vários
Felipe Aud é um designer paulistano de 42 anos que já compunha há muito tempo, mas que só agora em 2024 foi finalmente lançar seu primeiro álbum, o autoexplicativo “Acumulado”. Ele define o trabalho como MPB de garagem, mas eu ouso discordar, por ser restritivo. Além disso, já faz tempo que MPB perdeu o sentido para mim enquanto gênero musical.
Eu definiria este álbum de um jeito diferente…
Um álbum que soa como vários
Se tivesse que sintetizar toda a resenha em uma única palavra, seria diversidade. Várias vezes tive a sensação de estar ouvindo uma compilação de múltiplos artistas.
Nas primeiras músicas eu senti nas letras uma vibe bem Humberto Gessinger, mas depois passei a ter uma vibe mais Syd Barrett. Há momentos em que lembra o declamar do Criolo, e o vocal de dentro do poço do Jesus and Mary Chain.
Não me refiro apenas ao vocal ou à forma de cantar; o mesmo vale em termos dos gêneros musicais com os quais flerta. Creio que conceitualmente todo o álbum tenha girado em torno da intenção de se permitir beber de qualquer fonte: não só de qualquer gênero musical como de qualquer era e qualquer continente.
“Faz o que tu queres, pois é tudo da lei”, já cantava Raul Seixas.
A cola que organiza o caos
A coesão fica na linearidade do mesmo tipo de vocal em todas as faixas, com a mesma cadência letárgica e onírica. Aquela coisa tipo trilha sonora de uma cena em câmera lenta em um filme independente.
Outra coisa que dá coesão e não deixa o álbum soar como uma colcha de retalhos foram as escolhas de timbres e as escolhas de produção. Embora soe como artistas diferentes, tem uma coesão sonora que o impede de soar como álbuns diferentes. Não sei se isso faz algum sentido para você.
Nesse aspecto, lembra o “White Album”, onde John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ring Starr já estavam criativamente indo cada um para uma direção — o resultado foi um álbum duplo onde os Beatles soavam como várias bandas.
O título “Acumulado” sugere se tratar de um apanhado de ideias acumuladas ao longo do tempo reunidas em um único pacote. Sendo realmente essa a proposta, o álbum cumpriu o que se propôs.
Corre que lá vem o chato do fone de ouvido
Um aspecto em que fiquei dividido foi a produção, porque por um lado gostei bastante, mas, por outro, nem tanto. É muito bem produzido em termos de sonoridades, a riqueza de sons e instrumentos e a forma como são costurados.
Ainda mais quando praticamente tudo muda de uma faixa para outra, o que multiplica o trabalho e a energia consumidos pela produção.
O que não me agradou foi em termos de qualidade sonora — possivelmente porque comecei a ouvir música em ultra hd e dolby atmos esse ano e fiquei chato. No meu fone senti que deixou a desejar em termos de definição e espaçamento dos instrumentos. Não chega a ser algo como bitrate baixo, mas é algo que me lembra tipo o começo da era CD, antes de saírem as remasterizações digitais que davam mais clareza e definição aos instrumentos.
Talking ’bout my generation
O álbum foi feito da perspectiva de alguém que faz algo desde sempre, mas só foi realmente produzir uma obra na faixa dos 40. Algo com o qual me identifico, afinal de contas, escrevo desde o começo dos anos 2000, mas só fui publicar um livro realmente em 2021. E é aqui que mora o risco de alienar uma parte significativa do público.
Eu, que tenho quase 39 anos, me identifiquei, mas tenho minhas dúvidas se os mais novos e os mais velhos vão se identificar. O que não quer dizer que seja bom ou ruim, certo ou errado, é só uma escolha. E uma escolha requer um número de renúncias igual a infinito menos um. Para escolher uma coisa é preciso renunciar a todas as outras.
Os millennials (ou os temporões da geração x) certamente vão se sentir em casa. Principalmente se tiverem um gosto panorâmico do rock e seus desdobramentos e tropeços desde os Beatles até o Radiohead.
Em conclusão, “Acumulado” é um álbum cosmopolita, indicado a quem curte rock sem se restringir a ele, e concilia o ser eclético com ser exigente. Há aqui um experimentalismo bem “Sgt. Pepper’s…” e Tropicália, mas sem saudosismo barato ou mímese. Nenhuma das faixas fede a naftalina ou soa como a nova versão da Escolinha do Professor Raimundo..
A proposta foi beber de todas as fontes, mas o que importa são as fontes em que o autor escolheu beber — e o que ligar esses pontos nos diz sobre ele. Entre todas as infinitas possibilidades, cada escolha vai delimitando o infinito e dando forma, pintando um retrato. É possível ao fim da audição conhecer os gostos e visão de mundo de quem o fez — só por suas escolhas de referências, palavras e sons.
“Acumulado” está disponível no Spotify e demais plataformas de streaming; siga Felipe Aud no INSTAGRAM.