...

Em São Paulo o melhor amigo do homem (e da mulher) não é o cão, é o medo

Em São Paulo o melhor amigo do homem (e da mulher) não é o cão, é o medo
Praça da Sé, São Paulo — um dia na vida

Em 1974, o ex-baixista do Velvet Underground John Cale lançou seu quarto álbum solo, “Fear”, que abre com a faixa “Fear Is a Man’s Best Friend” — “Medo é o melhor amigo do homem”, em livre tradução. Eu não sei o que ele tinha em mente quando a compôs, mas certamente não uma cidade brasileira. Mesmo assim, cabe como uma luva para uma certa cidade: a maior do continente. Os cães que me desculpem, mas em São Paulo o melhor amigo do homem (e das mulheres) é o medo.

Se você tem carro, é só sair da garagem que lá está ele; em todo sinal que você pára, você olha ao redor e ele está sentado ao lado de todos os outros motoristas. Se você pega metrô, ele é a primeira coisa que você vê ao pisar para fora do portão; em toda estação lá está ele, grudando as pessoas a seus pertences. Se você anda de ônibus, lá está ele não só no ponto como no caminho até ele; todo passageiro que se sente do seu lado tem cara dele (e o vê na sua cara também). Ninguém pode dizer que ele não é democrático.

“Ah, você se acostuma”, dizem os paulistas, geralmente dando de ombros. Deve dizer o mesmo quem mora na Faixa de Gaza. E é verdade, você acostuma mesmo — e é aí que está o perigo. Afinal de contas, é ele que te faz olhar ao redor antes de parar num sinal à noite em uma rua pouco movimentada; é ele que te faz deixar o celular tocando no bolso para não atender no metrô com a porta prestes a fechar; é ele que te faz abraçar a mochila no lado da frente quando o ônibus lota. Em uma cidade onde você está sempre a um contato com um estranho de distância da morte, é melhor não dar bobeira. “Chapéu de otário é marreta”, já dizia Alípio Martins.

Do começo dos anos 90, mas mais atual do que nunca

Se a Praça da Sé estiver vazia, ele está lá; se a 25 de Março estiver lotada, também. O problema é que ele não tem horário de expediente, não tem dia de folga. Mesmo quando você está em casa, ele está de prontidão, e se alguém tocar a campainha após as 11 da noite, é só ele que tem coragem de atender. O problema é que você pode acabar mais do que se acostumando: se afeiçoando. Você pode se pegar levando ele para passear aos fins de semana e, como ele não tira férias, é bastante provável que você acabe o levando na bagagem quando vai passar o fim de semana em Bertioga, e nem se dar conta.

Apenas em janeiro de 2023, apenas em São Paulo Capital, segundo a SSP foram 224 estupros, 12 mil roubos, 19 mil furtos. Como confiar no desconhecido que puxa papo na fila; ou na pessoa que atravessa a rua em sua direção; ou na dupla de moto vindo atrás de você, ou em quem bate no vidro do seu carro? Seria ótimo se existisse um scaner que você pudesse apontar para alguém e saber se te oferece risco ou não. Mas não existe. O mais perto disso que temos é a versão orgânica, impressa no cérebro humano via seleção natural desde os tempos das cavernas como um mecanismo de defesa: o medo.

O medo acabou se tornando um patrimônio cultural imaterial. Se o arquétipo carioca sem medo é o malandro sambando e jogando uma altinha com os amigos na praia, o arquétipo do paulista sem medo é o solitário otário que tira o iPhone do bolso na Avenida Paulista, e alguém passando de bicicleta leva. É aquilo, né: chapéu de otário… A verdade é que o que não tem remédio, remediado está. Só resta aceitar o medo, do mesmo jeito que se aceita o metrô lotado na hora do rush, o mar de prédios se estendendo até o horizonte, o azul do céu e a garoa. Nos resta aceitar o medo como o melhor amigo, afinal de contas, se com ele é ruim, sem ele pode ser pior  —  MUITO pior.

Curtiu? Compartilhe!

André Garcia

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Seraphinite AcceleratorOptimized by Seraphinite Accelerator
Turns on site high speed to be attractive for people and search engines.