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“Computer World” (1981) do Kraftwerk previu o futuro — da música e da humanidade

“Computer World” (1981) do Kraftwerk previu o futuro — da música e da humanidade
Capa de "Computer World", do Kraftwerk, em vinil

No final dos anos 60, surgiu na Alemanha uma efervescente cena musical marcada pelo vanguardismo e experimentação. Evitando todo e qualquer clichê da música pop tradicional, usavam todo tipo de recurso eletrônico que já existisse com um único objetivo: fazer música diferente de tudo que já tivesse sido feito. 

Essa cena recebeu o nome de krautrock, e um dos pioneiros foi o Kraftwerk, então formado pela dupla Ralf Hütter e Florian Schneider. Após três álbuns, em 1974, com o acréscimo dos percussionistas Wolfgang Flür e Karl Bartos, deram uma guinada estética e sonora com “Autobahn”. A partir dali, eles passaram a usar sintetizadores e bateria eletrônica não mais para fazer música intelectual e inacessível, mas para reimaginar a música pop de forma eletrônica. 

Com “Radio-Activity” (1975), “Trans-Europe Express” (1977) e “The Man-Machine” (1978), eles foram aprimorando sua música eletrônica conforme o deselvolvimento tecnológico permitia. Até que em 1981, com “Computer World” eles chegaram ao seu auge sonoro. 

O som e a vida do futuro

O som obtido pelo quarteto em seu avançadíssimo estúdio particular, o Kling Klang, era de uma clareza e riqueza até então sem precedentes. A vasta gama de efeitos e texturas é tamanha que mesmo hoje muitos pressupõem se tratar de uma gravação digital, mas foi totalmente analógica. O que eles apresentaram, bandas como New Order e The Cure ainda levariam anos para serem capazes. 

Como se não bastasse, suas letras, que formavam um álbum conceitual sobre o mundo dos computadores, anteviu o mundo pós-internet — nosso presente. 

“Em seu mais alto nível, a música popular pode ter uma qualidade quase visionária. Músicos abençoados com um senso agudo de percepção são capazes de detectar as mais tênues vibrações de um futuro possível e então expressá-las por meio da música.”

Trecho do livro Kraftwerk Publikation  – A Biografia, de David Buckley e Nigel Forrest

No começo dos anos 80, computadores ainda eram trambolhos enormes, nada amigáveis e custavam uma fortuna. Seu uso ainda não era pessoal, e sim destinado exclusivamente a computar e armazenar dados, e resolver equações complexas em ambientes corporativos, acadêmicos e institucionais. A internet já existia, mas de forma muito incipiente, limitada a interligar agências militares e universidades.

O Kraftwerk, entretanto, previu que eles seriam usados para atender não só a nossas necessidades, mas seriam também nossa comodidade, fonte de informação, diversão e até vida amorosa. 

“Computer World […] foi composto por pessoas que pareciam ser capazes de ver o mundo em 1990 e mais além. Poucos teriam imaginado que […] os computadores iriam se tornar para tanta gente […] uma necessidade. O Kraftwerk imaginou.”

Trecho do livro Kraftwerk Publikation - A Biografia, de David Buckley e Nigel Forrest

Faixa-a-faixa

Computer World

 A faixa de abertura é dançante como o “The Man-Machine”, mas ao mesmo tempo atmosférica como “Radio-Activity”. Sua letra aborda o escopo e a dimensão do mundo dos computadores (a internet). A primeira parte, temos Interpol e Deutsche Bank, FBI e Scotland Yard: 

  • Interpol – Organização internacional que facilita a cooperação policial mundial e o controle do crime;
  • Deutsche Bank – Maior banco da Alemanha, e uma das maiores instituições financeiras do mundo;
  • FBI – Serviço de inteligência e segurança dos Estados Unidos;
  • Scotland Yard – Quartel-general da Polícia Metropolitana de Londres.

Ou seja, apenas instituições financeiras e de segurança.

A segunda parte repete para o que o mundo dos computadores seria usado: “Negócios, Números, Dinheiro, Gente” e “Crime, Viagem, Comunicação, Entretenimento”.


Pocket Calculator

Faixa mais dançante, é Ingênua e descontraída. Pode soar boba, mas é composta por camadas sobrepostas de notas em staccato que se encaixam de forma que de simples não tem nada. Seu teor lírico pode parecer deslocado, mas, se você parar para pensar, as calculadoras foram as avós dos computadores modernos. Naquela época, muita gente teve contato com um computador pela primeira vez com uma calculadora.


Numbers

Abstrata, consiste em números sendo contados em diversos idiomas diferentes por diferentes vozes robóticas. Com a leitura robótica tão comum nos dias de hoje, e que na época começava a se popularizar em eletrônicos. É a faixa mais “pancadão” do disco, lembrando as batidas do “Trans-Europe Express” que nos anos 80 influenciou até o surgimento do funk carioca. 


Computer World 2

Emendando na música anterior, mantendo a colagem de vozes, mas retomando o tema musical da primeira faixa. Dessa vez, as vozes, em dado momento, começam a acelerar e atropelar até se perderem em um caos inteligível, ruído. Representando como a velocidade da comunicação levaria eventualmente a um caos formado por um fluxo de informação que nos transborda. Como o que temos hoje com as redes sociais, que leva milhões ao uso compulsivo.


Computer Love

Essa música previu não apenas o surgimento do Coldplay como do Tinder. Chris Martin e companhia em 2005 emplacaram “Talk”, usando o riff dessa música não apenas como introdução, como também como refrão. Mais atmosférica e contemplativa, apresenta um eu-lírico solitário e desesperado que  recorre ao computador para encontrar um par para um encontro.


Home Computer

Mantendo a coesão musical e sonora, segue combinando batidas dançantes e funkeadas a sintetizadores atmosféricos. Sua letra se resume a dois versos que sintetizam o disco: “Eu programo meu computador pessoal / Teletransporto-me para o futuro”. O conceito de computador pessoal foi criado por Steve Jobs em meados dos anos 70, mas só foi realmente se difundir 20 anos depois, com Bill Gates e o Windows. Seus breakdowns são como interlúdios que impedem a música que cair na monotonia, por conta de sua simplicidade. É como o que seria feito anos depois pelo New Order em “Bizarre Love Triangle”, e o pelo Titãs com “O Quê”.


It’s More Fun to Compute

Faixa de encerramento, soa como um prefácio por não realmente acrescentar algo de novo em relação às anteriores. Sua letra se limita a repetir “É mais divertido computar” — um trocadilho com a mensagem “É mais divertido competir”, na época comum nas máquinas de pinball para estimular a competitividade (e o gasto de fichas). É mais divertido computar do que o quê? Viver? Quantas pessoas hoje em dia trocam a vida real pela virtual?


Com “Computer World” o Kraftwerk estava tão visionário que com sua capa previu até o surgimento do Pense Bem (que fazia conta e até musiquinha!).

Saudades do meu Pense Bem
Não acredite em minhas palavras, ouça “Computer World” e tive suas próprias conclusões

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André Garcia

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