O surgimento, ascensão e queda do Sniffin’ Glue — o primeiro dos fanzines
O fanzine é uma mídia alternativa por natureza, tanto que foi (e ainda é) a mídia oficial do punk. Sua acessibilidade e baixo custo faz com que seja relevante no underground e entre os mais independentes dos artistas. Para entender sua origem, entretanto, é preciso voltar no tempo para meados dos anos 60, quando surgiu o Velvet Underground.
Há uma célebre frase, geralmente atribuída a Brian Eno, sobre o álbum de estreia do Velvet Underground, lançado em 1967. Segundo ela, o disco vendeu poucos milhares de cópias, mas cada um que comprou formou uma banda.
O vírus do it yourself
Por mais que seja um pleonasmo, não há dúvidas de que “Velvet Underground & Nico”é um dos discos mais influentes do rock americano. Ele rompeu com as formas estabelecidas de expressão e consumo no rock, convocando as pessoas a produzir sua própria arte. A partir dali, o vírus do do it yourself (faça você mesmo) contaminou o MC5, que contaminou o Stooges, que contaminou o New York Dolls, que, em meados da década de 70, contaminou o Ramones.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, na Inglaterra, em 1975, a juventude estava cada vez mais cronicamente entediada — não só com o país e a música, mas com a vida. Descontentes, estavam sedentos por alguma novidade que não sabiam o que era… até que o álbum de estreia do Ramones foi parar por lá.
De boca em boca (ou ouvido em ouvido) aquele disco foi disseminando por lá o vírus do it yourself. Assim, o quarteto novaiorquino se tornou tão popular por lá que em menos de dois meses após o lançamento, em julho de 1976, eles já foram chamados para fazer dois shows em Londres. Os shows foram arrasadores, uma verdadeira epifania coletiva que deu forma a bandas como Sex Pistols, The Clash e Damned.
Concepção e nascimento
Quem também foi contaminado pelo do it yourself naqueles shows foi um bancário de 19 anos chamado Mark Perry.
“Saí da escola em 1974 e arrumei um emprego como bancário. Costumava comprar a NME e ler sobre o punk de Nova York: Ramones, Patti Smith, Television… Quando o álbum de estreia dos Ramones saiu, parecia tão fresco e emocionante. Fiquei impressionado. […] Quando ouvi Ramones, pensei: ‘Eu posso fazer isso’.”
Mark Perry ao The Guardian
Sabiamente, ele sentiu ter testemunhado um acontecimento histórico, e que precisava ser compartilhado com outras pessoas.
“Eu queria me envolver, mesmo não sendo músico. Já existiam fanzines, mas eram voltados para músicas mais marginais, como blues e country. […] Achei que seria ótimo fazer um fanzine punk.”
Mark Perry ao The Guardian
Como a mídia britânica estava quase totalmente alheia ao nascimento daquela nova cultura, Mark foi para seu quarto, pegou uma máquina de escrever de plástico e uma caneta marcador e fez ele mesmo — do it yourself em seu estado mais puro!
“Eu tinha uma velha máquina de escrever infantil que ganhei de presente de Natal no ano anterior, e usei ela mesmo. Eu riscava com caneta onde precisava e usava marcador para as manchetes. Era muito primário. Olhando para trás, parece algum tipo de declaração de faça você mesmo, mas o modelo estético punk ainda não existia naquela época. Eu simplesmente fiz o melhor que podia, com o que estava disponível.”
Mark Perry ao The Guardian
Com poucas páginas e muitos palavrões e erros gramaticais, tinha manchetes grosseiramente escritas à mão com marcador. A capa, também feita à mão, recebeu o título “Sniffin’ Glue and Other Rock ‘N’ Roll Habits” (Cheirar cola e outros hábitos rock ‘n’ roll), em referência à música”Now I Wanna Sniff Some Glue” (Agora eu quero cheirar um pouco de cola), do Ramones.
“A primeira edição não tinha muitas páginas e não tinha fotografias. A coisa mais importante era uma resenha dos Ramones.”
Mark Perry ao The Guardian
Cerca de vinte exemplares foram xerocados na fotocopiadora do trabalho da namorada de Perry e grampeados no canto, como um trabalho escolar mal-feito. Aquele aspecto precário e desleixado, com cara de que qualquer um poderia ter feito, acabou combinando perfeitamente com a urgência e o imediatismo da música punk e caiu nas graças de seus fãs.
Dessa forma, Mark foi até a loja de discos do seu bairro, onde esperava que as pessoas fossem rir do que ele tinha feito. Entretanto, para sua surpresa, a ideia foi tão bem recebida que todos os exemplares foram vendidos, rendendo assim dinheiro suficiente para uma nova tiragem.
“Eu nunca levava de baixo do braço para vender nos shows. Como eu era preguiçoso, envia nas lojas de discos, como Rough Trade, Virgin. Usando suas redes de distribuição, você podia levá-los para praticamente todas as lojas do país.”
Mark Perry ao The Guardian
O sucesso foi tanto que Sniffin’ Glue foi recebendo novas edições mensalmente, se tornando mais bem trabalhadas, com colagens e formato de livreto, mas mantendo a estética punk.
“O punk foi como uma bomba explodindo. Mudou minha vida. Alguns meses após começar o Sniffin’ Glue, eu tinha deixado meu emprego. Na quarta edição, estávamos falando sobre tomar conta da indústria da música. A demanda cresceu e as lojas de discos me adiantavam dinheiro para imprimir mais cópias. Começamos a produzi-las na gráfica e logo tivemos muitos ótimos fotógrafos contribuindo. Uma atitude foi formada, que o diferenciou dos jornais de música. Escrevemos sobre bandas de uma maneira que dizia: “Vá vê-los. Eles vão mudar sua vida. Você vai cortar o cabelo, largar o emprego e formar uma banda!”
Mark Perry ao The Guardian
Crescimento e reprodução
Com aquilo, o vírus do it yourself foi contaminando outras pessoas em outros lugares, que também começaram a fazer suas próprias publicações. Publicações aquelas que já haviam sido batizadas de fanzine, forma reduzida de fan magazine (revista de fã). Década antes do surgimento da internet como conhecemos, aquilo logo se tornou o principal meio de comunicação para divulgar e conhecer bandas punk naquela época. Aquele tipo de conteúdo não se encontrava em nenhum outro lugar.
“Eu estava no lugar certo na hora certa. Pode ser um fanzine lendário agora, mas naquela época não parecia. Anos depois, tenho orgulho do impacto que teve no que veio a seguir: outros fanzines punk, como London’s Burning, 48 Thrills, Ripped and Torn; bem como i-D e the Face, cuja filosofia do faça você mesmo e forte identidade estética deviam muito aos primeiros fanzines.”
Mark Perry ao The Guardian
Em 1977, quando o punk dominou Londres e Nova Iorque, tudo mudou. Empresários não tardaram a ver aquilo como uma oportunidade de faturar uma grana preta. As principais bandas da cena punk inglesa, como Sex Pistols e The Clash, se tornaram mainstream após assinarem contrato com grandes gravadoras. Dessa forma, elas acabaram abraçadas pela mídia tradicional.
Para muitos fãs, aquilo significou que seus heróis haviam se vendido ao inimigo, deixando na boca um sabor amargo de que os ideais punk não passaram de ilusão (assim como os ideais hippie, que eles tanto desprezavam). Mark Perry era um dos que se decepcionaram com o rumo que a coisa seguiu.
“Para mim, o punk morreu no dia em que o The Clash assinou com a CBS [uma grande gravadora] em 1977. Eu escrevi isso na época.”
Mark Perry ao The Guardian
Morte e legado
Sniffing Glue se tornava cada vez maior e mais profissional, com tiragens de mais de 10 mil exemplares, impressão off set e até mesmo anunciantes. Mark, entretanto, não estava nada feliz com aquilo. Para ele, as primeiras edições haviam sido históricas, mas as atuais eram horríveis. Para piorar, ele sentia que era apenas questão de tempo para que ele e sua criação também acabassem absorvidos e consumidos pelo capital.
“Até meados de 77, eu tinha um emprego de caça-talentos na Step-Forward Records e tinha começado minha própria banda, Alternative TV. Era demais fazer as três coisas. Além do mais, eu sentia que o fanzine estava sendo diluído.”
Mark Perry ao The Guardian
Dessa forma, para proteger sua publicação de desaparecer na história como algo banal e irrelevante, ele decidiu matá-la: Sniffin’ Glue foi encerrada em sua décima segunda edição.
“Eu pensei: ‘Doze edições e depois chega’. E foi o que fizemos. Imprimimos 20.000 cópias da última edição com o primeiro single do Alternative TV como um flexi-disc de brinde. O Sniffin’ Glue passou seu recado e saiu por cima.”
Mark Perry ao The Guardian
Embora tenha tido apenas um ano de vida, seu legado permaneceu vivo. Um grande exemplo disso foi o Subterean Pop, de 1980, de Seattle. O fanzine eventualmente se tornou o selo fonográfico Sub Pop, que deu início ao movimento grunge, lançando bandas como Nirvana, Soundgarden e Mudhoney.
E até hoje o fanzine segue vivo, já tendo sobrevivido ao surgimento da internet e a pandemia. Em São Paulo segue sendo comum em shows e eventos underground, principalmente entre as bandas de punk rock (o que mais tem na cidade).